quinta-feira, 21 de março de 2024

A Conquistense do Araguaia

 


Blog do Anderson > Colunistas > Ruy Medeiros | a Conquistense do Araguaia


Setenta e cinco anos é a idade que ela teria nesse 22 de março. A morte a ceifou, presa e indefesa, em 1974. Falo de Dinaelza Santana Coqueiro, nome de casada, nascida no lugar São Sebastião (Cachorros), distante uns vinte kilômetros da cidade de Vitória da Conquista, Bahia. Sua mãe, Junilia Soares Santana, integrava família (Soares), que explorava imóvel rural na região do Distrito de José Gonçalves. Seu pai, Antonio Pereira de Santana, fixou a família em Jequié, Bahia. Conheci Dinaelza Soares, na década de 1960, na agitada Salvador de movimentos estudantis. Estava para cursar geografia. Elas e outros estudantes chegaram a frequentar círculo no qual eu ministrava conversas sobre História.

No âmbito da repressão aos movimentos dos estudantes, ela e outros jovens abandonaram Salvador. Em verdade, em companhia de Vandick Reidner Pereira Coqueiro (com o qual se casaria), natural de Boa Nova, Bahia, e outros jovens, foi lutar, contra a ditadura militar, nas selvas do Araguaia. Lá foram trucidados e seus corpos nunca foram devolvidos à família e nunca foi sinalizado o lugar onde foram soterrados.

Conheço dois de seus irmãos, Diva e Gétulio. Diva Santana, lutadora pela busca dos corpos e das histórias dos mortos e desaparecidos, vitimas da ditadura militar, integrante e co-fundadora do Grupo Tortura Nunca Mais, com grande folha de serviços à memoria social referente aos perseguidos e assassinados por aquele regime de ódio. Gétulio Santana que, juntamente com o famoso cartunista Nildão, foi fundador da célebre livraria Literarte, de grande importância na Bahia, que eu frequentava. A “Literarte” foi recentemente objeto de uma “biografia” escrita pelo jornalista Gonçalo Junior.

A vida de Dinaelza Santana Coqueiro e a luta de sua família em busca de seu corpo, para dar-lhe sepultura condigna e celebrar-lhe a despedida, é objeto do livro -“Do corpo Insepulto à luta por Memória, Verdade e Justiça – um estudo do caso Dinaelza Coqueiro” (Editora CRV, Curitiba, 2020), de autoria da também conquistense, Gilneide Padre (da família Soares, por parte de mãe). É livro fundamental, não posso deixar de lembrar.
Dinaelza. São Sebastião, Vitória da Conquista, BA, 22.03.1949. Matas do Araguaia, Xambióa (?), Pará, 8(?) de março de 1974.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

183º aniversario de Vitória da Conquista

 


Ruy Medeiros | advogado e historiador

Publicado originalmente no https://www.blogdoanderson.com/

Ano de 2023, são 183 anos contados da elevação do Distrito de Nossa Senhora da Vitória, emancipado da Vila de Santana do Príncipe de Caetité, por lei de 04 de maio de 1840. Mas, por ato oficial, o aniversário é fixado em 9 de novembro, porque, nessa data, no ano de 1840, foi instalada a Imperial Vila da Vitória, com a posse de sua Câmara de Vereadores que, na forma da Constituição do Império e de Lei de Imperial de 1828, exercia os poderes legislativos e executivo, restritos em verdade. De pequeno núcleo às margens do Riacho da Vitória (Rio Verruga) encoberto desde o final da década de 1960 pelo piso da Rua Ernesto Dantas, lentamente o povoado cresceu. Em 1817, já contava com quarenta casebres, coisa que corresponde a uma população de 240 pessoas. As edificações simples foram assentadas à margem do Riacho da Vitória (Rio Verruga), considerando o relevo, mais próximo ou mais distante (a testada das casas da atual Praça Virgílio Ferraz em distância entre 100 e 90 metros, já a testada das casas da parte baixa da atual Praça Barão do Rio Branco, em distância média de 30 metros, do Rio).

Foi-se conformando apenas uma grande Praça (a Rua Grande), com templo católico cuja construção teve início em 1804. A praça foi alterada substancialmente, entre final da década de 1930 e primeira metade da década de 1940 surgindo um miolo com construções, e duas praças (atuais Tancredo Neves e Barão do Rio Branco)  Ao longo da história da ocupação do solo urbano de Vitória da Conquista, pode-se verificar o seguinte: Inicialmente, portanto, o curso do riacho de Nossa Senhora (rio Verruga) foi o condicionador maior, no trecho da atual Praça Virgílio de Ferraz até a rua 2 de julho (Várzea), do crescimento urbano. As edificações acompanharam o curso do rio, para a qual tinham quintal de fundo e a intervalos havia becos perpendiculares ao rio.

A partir da única rua e becos, o centro foi adensando-se, utilizando sobretudo o outro lado do rio e os caminhos para as fazendas, caminhos para Muranga/Santana e Bem querer (atual Siqueira Campos); Caminho para São Bernardo (atual Sifredo Pedral/10 de Novembro) caminho para a Várzea (atual 2 de julho); caminho para os Campinhos (atual Fernando Spínola).  Crescimento utilizando estradas para Barra do Choça, Brumado, Itambé, acesso à Rio Bahia (Bartolomeu de Gusmão). Perpendicularmente a estradas e acessos surgiram os parcelamentos (loteamentos). As estradas tornaram-se avenidas, inclusive com estímulo do poder público, que às margens, ou proximamente adquiriu área para implantação de conjuntos habitacionais (Urbis, BNH, INOCOOP …).

O processo de parcelamento à margem das rodovias e a locação de conjuntos habitacionais desenharam uma cidade com grandes espaços não construídos, que aos poucos foi sendo ocupado por loteamentos, inclusive por iniciativa pública. Disso decorreu uma cidade “espalhada”, com sérias dificuldades para a prestação de serviços públicos, e mal articulada com o centro, e mistura de tráfego urbano e rodoviário.

O primeiro Plano Diretor (1976) pretendeu disciplinar o crescimento da cidade. Ele previu um zoneamento urbano, área para centro administrativo (onde hoje está o Caminho do Parque) ampla área para o Centro Educacional (grande área do Instituto de Educação Euclides Dantas e lugares onde hoje estão os loteamentos Amendoeiras e o Fernando Flores) ambicioso: novas escolas, bibliotecas, etc. Junto ao plano diretor foi aprovado o Código de Obras. Embora o Código de Obras tenha sido aplicado por proprietários que quiseram e edificaram regularmente, ou foram eficazmente fiscalizados, muitas edificações foram feitas sem aprovação de projeto (dando continuidade à marcante dicotomia construções “regulares” e “construções” irregulares, exigindo do poder público municipal, em um momento na década de 1980, a anistia e, em seguir, a possibilidade de “regularização” de edificações).
O Plano Diretor da década de 70 foi contrariado (restou o código de obras parcialmente obedecido, como mencionado), a própria administração não se importou com ele. Abandonou-o.

Em 1988, a Constituição exigiu a adoção de Plano Diretor para cidades com mais de 20.000 habitantes. A Lei 10.257 de 10.7.2001 (Estatuto da Cidade) estabeleceu, a partir de 10.07.2001, para os municípios que não tivessem Plano Diretor o prazo de 5 anos para o adotarem. Em 2006 foi aprovado o segundo plano diretor do município (Lei 1.325), seguido do Código de Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo e de Obras e Edificações do Município de Vitória da Conquista (Lei nº 1.481), e Lei 2.043/2015, que altera as anteriores, Lei Complementar 2.116/2016 (que dispõe sobre ordenamento e uso do solo da área de influência do Aeroporto Regional de Vitória da Conquista), além de várias outras específicas (Perímetro do Campus Vivant, perímetro do Haras Residence, perímetro do Residencial Paraíso, alterações da Lei de Bairros, Lei dos Distritos, etc).

O plano diretor vigente ultrapassou período de revisão. Sabe-se que tentou disciplinar o crescimento, mas ficou aquém do dinamismo urbano de Vitória da Conquista e, sob alguns aspectos, provoca engessamento de projetos construtivos. Não evita a persistência de antigo vicio de loteamentos à margem de rodovias que se transformam em avenidas sem deixarem de ser rodovias (mistura de tráfego), de parcelamentos desarticulados à malha, etc.
Há um ante-projeto de plano da gestão (2017/2020), cujo destino pretendido pela atual administração é desconhecido e outro contendo apenas zoneamento, diretrizes e princípios (que só teriam operacionalidade com conjunto de leis posteriores), mas que de antemão revoga leis vigentes, podendo criar vácuo legislativo.

No entanto, Vitória da Conquista, precisa saber o que ela deseja como cidade, e se pretende estancar o atual modelo impresso em seus condomínios fechados, a forma de expansão urbana, a articulação rodoviária, a previsão de espaços de metrô de superfície, a expansão (ou não) do atual distrito industrial, etc. Lembre-se, Vitória da Conquista, que você não é Suíça Baiana.


quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Avenida Olivia Flores, destruição anunciada

 

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Maria Mar

 

Ruy Medeiros | Maria Mar

Foto: BLOG DO ANDERSON

Em determinados momentos da história, a sensibilidade do escritor é despertada pela lembrança associada ao risco. É como se, na consciência do intelectual, um sinal de perigo o alertasse e ele então voltasse para a memória de sua sociedade para abrir o sinal vermelho do risco. Exemplo eloquente desse fenômeno literário – com grandeza – está em Arthur Miller. Quando o macartismo tomava conta dos Estados Unidos, com chantagens, censuras, interdições de direitos, prisões, expulsão de pessoas de seus empregos, processos etc, tudo sob falsa alegação de investigar atividades antiamericanas, a memória de Arthur Miller visitou o passado: numa comunidade de Massachusetts, em fins do Século XVII, dezenove pessoas foram julgadas e enforcadas.

Seu crime? Feitiçaria. Adolescentes de famílias puritanas foram acusadas de, em companhia de uma negra nascida em Barbados (ilha das Antilhas) prática de rituais amorosos de feitiçaria. Logo, com insistência, surgiu a acusação: por intermédio de jovens, o demônio estava atuando contra a comunidade e sua religião. Delações aparecem em vários locais da comunidade. “Pessoas importantes” são acusadas por aquelas jovens de idêntica prática. A perseguição desenfreada, se estabeleceu e o fanatismo ocupou o primeiro plano na comunidade puritana. Era a caça às bruxas. E, séculos após, já no XX, a paranoia de Massachusetts, sob a forma política de macarthismo reaparecia. Assim, leitores aos milhares perceberam a mensagem: com a peça The Crucible (mais conhecida com o título do filme que ela inspirou – As Bruxas de Salém), baseada em fatos reais, Arthur Miller falava sobre algo que, em essência, era da natureza do macartismo: o comportamento fanático contra adversários ou contra os que pensam diferentemente

No Brasil de nossos dias, marcado por absurdos pregados e praticados por políticos que sonhavam (e sonham ainda!) com o restabelecimento do terror de estado, algumas obras de ficção também visitaram o passado, com suas bruxas e bruxos e seus perseguidores com vestes talares ou fardas, isto é, reviveram a história real vista sob a forma de ficção, em romances fundamentais: “Cabo de Guerra”, de Ivone Benedetti, “Um dia esta noite acaba”, de Roberto Elisabetsky; “Arrigo”, de Marcelo Ridenti (Editora Boitempo), “A noite da espera”, de Milton Hatoun (Companhia das Letras). Julguei necessário falar disso a fim de apreciar um belíssimo romance, de autoria de Ana Isabel Rocha Macedo: Maria Mar estrela das ideias e do amor (Empresa Gráfica da Bahia, Salvador, 2023). É livro da natureza dos anteriormente referidos.

O romance Maria Mar é fruto da consciência, esteticamente conduzida, que se recusa dobrar diante da barbárie anunciada e que visita um passado algoz vivenciado por homens e mulheres, que hoje estariam na etapa de seus setenta anos, pouco mais ou menos. É o relato de vida de um jovem (percebe-se que conquistense), que após concluir o Curso de Pedagogia e já com noção de sentido que tem um regime de força, sua consistência opta pela liberdade, resolve participar de concurso público e, aprovada, assumir a cadeira de professora numa pequena comunidade litorânea. Sem romper, distancia-se da família, já órfã de pai, para em nível mais transparente de sentimentos, voltar a conviver bem com a mãe, embora em locais diferentes. Conflitos de família são superados, novas amizades feitas, novo relacionamento conjugal da mãe é aceito, cultivo de música e literatura toma novo sentido na vida daquela jovem. Naquela pequena comunidade encontra o amor na pessoa de um jovem que, clandestinamente, como outros tantos, combatia a ditadura reinante, e do qual a história é aos poucos revelada; Depois, um corpo de homem jovem é encontrado morto com sinais de tortura e, para a jovem, saudade, busca e tristeza. Digo pouco do enredo, a tessitura é valiosa, no entanto.

É um livro capaz de bem revelar sentimentos, sobretudo de solidariedade: das amizades espontâneas e construídas. Esse último romance de Ana Izabel fixa o leitor sempre na busca do próximo lance da narrativa. Como se diz, prende o leitor. A narrativa é vivaz, bem construída, de forma que mantem o leitor desejoso de saber o que o espera no próximo lance, ou qual é o desenlace.

Os personagens são muito bem construídos, o apelo do narrador virtual dá à narrativa o tom de uma conversa entre duas pessoas bem conhecidas e o leitor fica surpreso, nas páginas finais do livro, com a “identidade” de quem depõe a história conflitual entre tendências do sentimento humano, representado por pessoas e regime. Não revelei acima os meandros e final da longa história de vida retratada num romance que, não tenho dúvida em afirmar, inscreve-se num dos melhores que já li.






sexta-feira, 9 de junho de 2023

Há 105 anos, foi-se o último boêmio



  / Anderson BLOG @blogdoanderson


Ruy Medeiros

Há escritores que são lidos bastante em seu tempo e continuam a ser lidos; outros são pouco lidos em seu tempo e, descobertos depois, são muitos lidos; finalmente há aqueles que, muito lidos em seu tempo, quase que caem completamente no esquecimento, sendo lembrados quase que somente em sua terra de origem. Emilio de Menezes está nessa última situação.  Nascido em Curitiba em 4 de julho de 1866, faleceu no Rio de Janeiro em 8 de junho de 1918. Em 1927, seus restos mortais foram trasladados para Curitiba, onde os esperava cortejo de milhares de pessoas, tal a admiração que ainda gozavam a vida e a obra do poeta, e foi sepultado no cemitério municipal da capital paranaense. Nessa tem busto de mármore na Praça Osório. Autor de várias obras, foi ele membro da Academia Brasileira de Letras. Vale lembrar que, por motivo de doença e em razão de a ABL exigir, por mais de uma vez alterações em seu discurso de posse (censura!), por entender não serem adequados atributos nele expendidos, demorou de ser empossado. Seu fardão de acadêmico foi-lhe presenteado pelo Governo do Paraná. Empossado, seu discurso de posse, com alterações, só foi publicado no ano de 1924.

Por detrás dessa notícia que lhe dou, havia um dos maiores boêmios, considerado por seus contemporâneos um grande escritor. Lido ele era. Leitores buscavam em jornais suas tiradas em relação a pessoas, notícias ou fatos e passavam-nas verbalmente para outros. Sua principal biografia tem o sugestivo título de “Emilio Menezes – o ultimo Boêmio”, com várias edições, de autoria de Raimundo de Menezes. Gozador. Satírico. Maledicente. Inconveniente. Houve quem o apelidasse de má língua. Mas era admirado e mantinha bom círculo de amigos, especialmente os frequentadores da Colombo, no Rio de Janeiro, vários escritores como ele. Foi colaborador de jornais e revistas importantes do Rio de Janeiro e de São Paulo. Segundo tradutor, em língua portuguesa, de “O corvo”, de E.A.Poe, deixou publicados Marcha Fúnebre, Poemas da Morte, DIES | RAE, Poesias, Mortalhas etc. Em 1980, o Governo do Paraná, em edição da José Olímpio, publicou sua obra: Emilio de Menezes Obra Reunida.

Mestre do trocadilho, dos reclames em forma de poesia, da crítica mordaz, Emilio ficou na memória de muitos como o grande trocadilhista de todos os tempos.
Se você suportou essa notícia até aqui, siga-a com alguns trocadilhos do poeta: Resposta, numa solenidade, a uma senhora que lhe perguntou se ele sabia quais eram os encantos da mulher: “seio-os, minha senhora”. À outra, que não percebeu o seu estado etílico e resolveu perguntar-lhe o que ele tinha em sua descomunal barriga: após colocar a mão à altura do umbigo, o poeta respondeu: daqui pra cima, cerveja; para baixo, Parati (Parati era o nome de uma famosa cachaça). De Madame Curie, que ganhou o Prêmio Nobel de Química, sobre quem corria boato de estar apaixonada: “devia ganhar o prêmio de Física por seus estudos de atração dos corpos.” Em relação a um insigne ministro cuja demissão era desejada pelo Presidente de República, que o fritava, mas que se fazia de desentendido e ficava no cargo como se nada houvesse: “é um insigne ficante”. Sobre projeto de lei prevendo tributação da “renda” encaminhado ao Congresso pelo Presidente: passará contando que não toque nos “bicos” dos deputados. A uma pessoa, que não era de seu agrado, e que lhe pediu que ele contasse seu último trocadilho, Emilio disse: “Eu morava em Paquetá e mudei para a Ilha do Governador”. O interpelante disse que isso não era trocadilho. Logo, Emílio respondeu: mas é uma boa troca d’ilhas.

Emilio fez, por encomenda, versos de propaganda. Ai vão alguns deles: Para uma marca de manteiga, no período da Guerra dos Balcãs: Da Sérvia à Herzegovina, o ardor escalda | Porque esse povo forte e unido importa | Manteiga do Brasil, marca Esmeralda. Para a cerveja Brahma: José Bonifácio insulava | Nessa ilha pitoresca, Paquetá! | Lugar onde a água de coco dominava | E a Brahma Porter dominando está. Para o cigarro Excelsior: Do alto do céu demande o rumo | O aroma que o cigarro tem. | Porém o odoroso fumo | do Excelsior vai muito além.

Depois de milhares de tiradas engraçadas e de acoites verbais a políticos (inclusive Ruy Barbosa), O poeta morreu doente e aos poucos sua obra poética, embora objeto de apreciação, foi aos poucos caindo no esquecimento. Envelheceu, e com ele, sua forma de viver. Mas ele sabia que tudo envelhecia. Disse-o na estrofe última de Tarde na Praia, ao contemplar o mar: E ao contemplá-lo assim, tristonho digo, | vendo-lhe, à espuma, os meus cabelos brancos: | o velho mar envelheceu comigo.”

segunda-feira, 22 de maio de 2023

a pergunta

 

Ruy Medeiros | a pergunta

Foto: BLOG DO ANDERSON

Ruy Medeiros 

Sou de 1947.

A primeira vez que ouvi a pergunta, devia ter 16 anos. Penso que a ouvi no Colégio Central da Bahia. Um colega – sempre imagino que foi um colega – falou: até hoje o mundo se pergunta como a Alemanha, nação mais civilizada do mundo à época, aceitou o nazismo. Então eu já tinha alguma informação sobre o que era aquele regime. A memória sobre a ditadura de Vargas estava presente na geração que a suportou ou que a combateu. Era uma geração dividida e muitos a comparavam à ditadura de Hitler, fazendo com que o nazismo fosse evocado juntamente com a memória do ditador brasileiro. Depois eu soube que os politicólogos as diferenciavam. 

A pergunta era feita como se toda a Alemanha houvesse aceito Hitler. Era uma pergunta válida, mas induzia em muitos o sentimento de homogeinização política da sociedade alemã em relação ao sentimento pró nazismo. Não todos os alemães apoiaram o regime de Hitler e sua consigna “Deutshland uber alles” (Alemanha sobre todos). Mesmo uma parcela significativa, porém compulsoriamente calada, que apoiou o ditador alemão, passou a dele discordar, mas já não se podia eficazmente combatê-lo. O terror de Estado/partido dominou toda a Alemanha.

Mas a pergunta tinha sua razão e angustiava. Mexia com estruturas da sensibilidade e da inteligência.

Por que Alemanha, tida por muitos como o país mais civilizado, imergiu no terror nazista?

Depois vi outros terrores aparecerem no mundo. No Brasil, vio-o instalado em 1964 com a participação de parcelas da sociedade manipuladas. O fim da ideia de direito e da noção da dignidade da pessoa humana foi decretado pelos ditadores. Mesmo aqueles de minha geração, que não combateram o terror de Estado à brasileira, com algum tempo, passaram a discordar dele. A parte direita política passou a ter vergonha da ditadura militar e de tudo aquilo que ela significou.

Um dia a pergunta reacendeu e ganhou força na angústia de cada um. Novamente, agora, para o País a pergunta retorna (no fundo é a mesma) com força que o tempo não destruiu. Agora ela se põe multifacetada: por que diante de todo o desenvolvimento o obscurantismo toma conta da mente e do fazer de tantos? Por que tantos comunicadores pregam um regime que lhes calará a boca? Por que vários cantores apoiam implantação de um poder que cerceará a letra e a música? Por que advogados (para esses a liberdade é essencial) apoiam golpe capaz de destruir direito e direito de defesa? Por que tantos médicos põem-se contra a evidência científica? Por que tantos amesquinham sua personalidade, pedindo um regime que suprima o direito de sua própria inteligência, cultura, saber, expressar-se?

Aí está a pergunta.

Sobre ela há uma questão teórico-prática: os cultores de sua própria escravidão não podem nos impor servidão alguma e nós, que repudiamos a opressão, temos que encontrar formas eficazes, que tornem desnecessária a pergunta e que construam o nosso “fascistas non pasarán”.

A Conquistense do Araguaia

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